[Livro] A depressão como fenômeno cultural na sociedade pós-moderna. Parte 1: um ensaio analítico comportamental dos nossos tempos

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A resenha a seguir foi escrita pelo Professor Renato Almeida Molina a convite do Boletim Contexto. Renato Molina é mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, Psicólogo na SEJUDH – Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado de Mato Grosso e Psicólogo Clínico.

A obra é distribuída gratuitamente e pode ser baixada aqui.

A obra aqui apresentada ilustra de modo linear a relação entre contingências dos nossos tempos e o modo como estas contribuem para o desenvolvimento e propagação do Transtorno Depressivo Maior (TDM) entre membros de sociedades capitalistas industrializadas, tecnológicas, com alta demanda por produtividade e com valores cada vez mais calcados nas imagens. A sequência escolhida pelos autores permite a compreensão da relação proposta de modo claro, passando pela exibição de critérios diagnósticos e epidemiológicos; explorando aspectos conceituais e empíricos pelos quais a análise do comportamento propõe a compreensão do fenômeno depressivo; visitando diferentes épocas de modo a permitir a compreensão da alteração das contingências em um percurso histórico (sociedade pré-moderna, moderna e pós-moderna) que, ao que se revela, tem contribuído para o aumento da incidência do Transtorno Depressivo Maior.

A introdução do texto é elucidativa em revelar a dimensão do problema explorado pelos autores. Passando em princípio por critérios diagnósticos – de modo a diferenciar o TDM de outras desordens ou mesmo de situações passageiras –, exploram adiante dados estatísticos e epidemiológicos que acendem o alerta: o Global Burden of Diseases, Injuries and Risk Factors Study (GBD) apresentou a ascensão do TDM do 4º lugar (1990) para o 2º lugar (2010) como doença responsável pela perda de um ano de vida saudável. Indicativos sobre uma e ainda os prejuízos econômicos causados pela doença são apresentados.

O capítulo seguinte envolve a análise de aspectos conceituais e empíricos da depressão sob o enfoque da análise do comportamento. Capítulo crucial para os interessados na abordagem – para os quais o livro é naturalmente dirigido, como destacado em seu título –, pode ser o único que cause algum desconforto para os não familiarizados com a área, especialmente nos trechos relacionados ao comportamento verbal, equivalência de estímulos e teoria das molduras relacionais. Esse alerta só é feito aqui por se acreditar na relevância da obra mesmo para aqueles não conhecedores da análise do comportamento. A exploração de aspectos conceituais e empíricos passa por: Ferster (1973) e a ideia de que a baixa densidade de estímulos reforçadores positivos seria responsável por características do diagnóstico de TDM; Lewinsohn e colaboradores, em sugestão de que o modelo deprimido seria resultado de uma baixa densidade de reforçadores positivos contingentes às respostas, ou seja, pelos reforçadores disponíveis não serem produzidos pelas respostas emitidas pelos sujeitos; Kanter, Cautilli, Busch e Baruch são apresentados com a ideia de uma diminuição no responder devido a erosão do reforçamento – deixando claro que esse conceito ainda necessita de pesquisas experimentais –, processo  pelo qual estímulos reforçadores deixam de ter essa função ao longo do tempo por habituação ou saciação.

Além das consequências do responder, os autores ainda buscam aspectos relacionados ao controle por estímulos e ao comportamento verbal para elucidarem a compreensão do padrão comportamental deprimido. Retomando Lewinsohn e colaboradores, indicam a indisponibilidade de reforçadores devido a mudanças ambientais como fator determinante para a depressão. Essa “perda de ambiente” (estímulos discriminativos) pode ser entendida em contextos variados, como a perda de um parceiro ou parceira, de amigos, de emprego, além de inúmeras outras.

Antes de seus apontamentos sobre o comportamento verbal e suas possíveis relações com a depressão, os autores ainda consideram o repertório comportamental do indivíduo para obtenção de reforçadores em diferentes ocasiões, sendo apontados o estabelecimento de relações interpessoais e a capacidade de modificar situações específicas como fatores críticos em relação a este ponto. A relação entre comportamento verbal e depressão se inicia pela avaliação de extremos: o excesso ou déficit de comportamentos governados por regras. Enquanto o déficit pode dificultar o autocontrole e a capacidade de resolução de problemas, o excesso pode ocasionar alguma insensibilidade diante das mudanças de contingências. Para além destes pontos, a teoria de equivalência de estímulos e a teoria das molduras relacionais são apresentadas como modo de ampliação da gama de situações que contribuem para instalação e manutenção do quadro depressivo, o que ocorreria por meio do fenômeno da transferência e transformação da função dos estímulos. Em conjunto, isso pode promover uma baixa frequência de respostas ou ainda respostas que não produzam reforçadores, combinando assim elementos que favorecem o surgimento do TDM.

A imersão nas bases empíricas para a compreensão do fenômeno da depressão continua ainda neste capítulo com a explanação de alguns modelos experimentais de psicopatologia, sendo os seguintes escolhidos pelos autores: estresse crônico moderado; desamparo aprendido; separação e derrota social.  No primeiro caso, estressores de baixa intensidade são apresentados por um período prolongado de tempo. O resultado revela uma série de sintomas comumente vivenciados em quadros depressivos, como: anedonia, diminuição da atividade locomotora, perda de peso, alterações de sono, entre outros. O desamparo aprendido se refere a um procedimento que expõe o sujeito experimental a eventos aversivos (choques) incontroláveis. Nesse caso, o grupo exposto previamente a condição de incontrolabilidade não aprende a resposta de fuga, de modo a não estabelecerem uma relação direta entre suas ações e as mudanças ambientais, algo equivalente à passividade e desesperança na depressão em humanos. No modelo experimental de separação, macacos filhotes são isolados temporariamente de sua mãe e de outros macacos adultos em seu meio social. A resposta típica para este modelo é a apatia e mesmo no retorno ao convívio social o comportamento pode se manter com diminuição na atividade locomotora, na exploração do ambiente e no convívio social com outros membros do bando, um conjunto que se assemelha ao isolamento social apresentado em humanos com TDM. Por fim, o modelo de derrota social traz uma condição na qual um rato é introduzido no ambiente de outro rato maior e de uma cepa com maior nível de agressão. Nessa situação, o rato menor será facilmente derrotado pelo rato maior, residente. Essa mesma condição será aplicada por alguns dias ou mais. Os resultados comportamentais revelam anedonia, diminuição da atividade locomotora, no comportamento exploratório e de cópula, entre outros.

Com o título de Depressão e Cultura – um diagnóstico de nossa época, os autores situam a pós-modernidade como iniciada a partir do último quarto do Séc. XX. De modo cuidadoso, se preocupam em explorar a passagem entre épocas, pré-modernidade e modernidade, descortinando sua interpretação de como esta última estabeleceu novo arranjo de contingências sociais e, consequentemente, para a emergência de uma nova noção de indivíduo. De pronto, vale o destaque para a abertura de diálogo realizada pelos autores entre a análise do comportamento e outras áreas, como a filosofia, ciências sociais e psiquiatria. É certo que esta abertura ao diálogo contribui para o enriquecimento da análise interpretativa feita pelos autores, bem como leva a análise do comportamento ao contato com outras áreas, com as quais também pode contribuir.

Sobre a pré-modernidade o destaque se dá à condição na qual a sobrevivência de cada indivíduo encontrava-se relacionada, em todos os sentidos, à sobrevivência dos outros. O enfoque sobre as necessidades coletivas tornava os objetivos do indivíduo e do grupo como aspectos comuns ao outro, a cooperação era fator determinante para a sobrevivência de todos e, consequentemente, de cada um. O coletivo é sobreposto ao individual. É ainda relevante para o texto o fato de que neste período não se distingue, de modo específico, uma noção de infância, sendo as crianças envolvidas em tarefas cotidianas equivalentes àquelas exercidas pelos adultos. Outra importante diferença se refere ao controle exercido pelo tempo. Seu controle nas sociedades feudais se dava pelos ciclos da natureza: plantio-colheita; claro-escuro.

A transição entre pré-modernidade e modernidade é elaborada em torno de alguns eixos centrais: transformações nas tecnologias agrícolas e nos meios de transporte, aumento da produtividade, gerando excedentes que poderiam ser comercializados, o crescimento populacional e urbano, surgimento de uma nova classe social – a burguesia – possível em função da monetarização das funções econômicas e atividades produtivas. A busca crescente por lucros e o fortalecimento das relações de mercado surgem amparadas por uma ética protestante, que sustentou ideologicamente o acúmulo de capital. Nessa transição, as bases coletivas que ampararam o modo de vida feudal começam a ruir, dando espaço ao individualismo que chegaria a seu ápice na pós- modernidade. A modernidade pode ser situada no período de consolidação do modelo capitalista de produção, sendo a revolução industrial do Séc. XVIII seu marco principal. A ampliação administrativa dos espaços e o controle do tempo são alterações ambientais desse período. Com relações já não mais pautadas em um grupo social restrito e de atitude coletiva, os indivíduos nas sociedades modernas passaram a experimentar uma condição de autonomia e independência em relação aos demais. As noções de ‘eu interior’, ‘eu verdadeiro’, independente da sociedade já estão com suas bases constituídas. Estes fatores vieram acompanhados da promoção e refinamento do autocontrole individual, do surgimento de uma concepção de interioridade de sentimentos e pensamentos e de uma maior restrição à impulsividade. O tempo cotidiano agora passava a ser pautado pela produção, quando parte do tempo passa a ser expropriada do trabalhador. É tempo para aceleração e acúmulo de capital. A noção de infância é aqui constituída com a separação do convívio com os adultos e o encaminhamento para a escola como forma de socialização. Destaca-se ainda, como fator importante de análise, o surgimento de outra construção social desta derivada: a adolescência. A expansão da espera para o ingresso na vida adulta teve como justificativa as funções sociais cada vez mais complexas da vida adulta na sociedade capitalista-industrial. No entendimento dos autores, essa longa espera parece ser relevante para a compreensão dos valores da cultura contemporânea e suas relações com a produção da depressão. Fundamentalmente, a modernidade cultivou sobre diversas bases a concepção de indivíduo autônomo, com nuances de subjetividade e interioridade não contemplados em períodos anteriores.

Já são possíveis as relações entre modernidade (antecipando o período considerado crítico para os autores) e depressão. Emprestados da obra de Ferreira e Tourinho (2011), dois fatores são sugeridos: a distância entre os períodos de infância e adolescência com relação às demandas da vida adulta, tendo em vista a ausência da prática deste repertório por períodos prolongados; a necessidade de tomar decisões de modo autônomo diante de uma ampla gama de possibilidades de consumo e cursos de vida. Lidar com o peso das renúncias feitas e do êxito ou fracasso das escolhas diante de um contexto que valoriza e apregoa a independência tem seu custo. A relação entre modernidade e depressão traz ainda a análise do artigo de B. F. Skinner (1986), “O que há de errado com a vida cotidiana no mundo ocidental? ”, que revela a contribuição extemporânea já conhecida deste autor.

Finalmente, a passagem à pós-modernidade é anunciada com base em dois eixos principais: a globalização econômica e a interligação de mercados e culturas através do desenvolvimento das telecomunicações e das tecnologias de informação. Essa combinação aumentou de modo exponencial a experiência temporal individual e coletiva, exigindo que volumes cada vez mais abundantes de informação sejam consumidos e compartilhados, o que acelerou ainda mais a execução das tarefas cotidianas. Os autores alertam que na sociedade da produtividade, o tempo economizado passou a ser preenchido com mais tarefas e não com o ócio. Aspectos já relevantes para a compreensão da depressão na modernidade, como a dificuldade em parar e não fazer nada e a urgência em aproveitar o tempo, são elevados em níveis jamais vistos no tempo da informação instantânea, de modo que o não envolvimento em repertórios semelhantes produzam, como nunca, sentimento de culpa, inferioridade e inadequação social, todos potencialmente associados à depressão. Nesse funcionamento em taxas sempre elevadas, o estresse crônico moderado aparece como um primeiro modelo experimental de amparo para a relação sociedade pós-moderna e depressão.

A partir deste ponto, diálogos interessantes com o Sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017) e com o escritor francês Guy Debord (1931-1994), são estabelecidos. Os conceitos de modernidade líquida (Bauman) e sociedade do espetáculo (Debord), passam a constituir elemento central do escopo de análise dos autores. A “tradução” dos termos propostos pelos autores para termos comportamentais é relevante: a sociedade do espetáculo, que transforma imagem em mercadoria de consumo passa a ser entendida como um conjunto de práticas culturais exercidas pela mídia e propaganda, que têm como objetivo estabelecer relações arbitrárias (equivalência de estímulos e teoria das molduras relacionais) entre determinadas mercadorias e outros reforçadores já estabelecidos na cultura moderna. Nessa relação arbitrária, é o comportamento de consumir aquela imagem que está sendo reforçado e não as propriedades inerentes ao uso daquele produto. Trata-se de momento, posterior ao estabelecimento da sociedade industrial, quando a produção excede as necessidades de consumo, sendo necessário, portanto, que o comportamento de consumir se estabeleça em frequência capaz de atender à produção da indústria. O realce indica que a cultura de massa estabelece e divulga que as aparências exercem controle sobre as pessoas, sendo o consumidor esteticamente sensível e sofisticado valorizado e detentor de status social, ou seja, reforçado por seus pares por este padrão de comportamento. O consumo como questão de identidade e subjetividade do sujeito pós-moderno se revela como variável central para compreender a produção social da depressão. A relação explícita entre a depressão e a sociedade pós-moderna evidencia, até certo ponto, de modo doloroso o caráter determinista-externalista da análise do comportamento. As contingências de competição, consumo e de caráter hedonista ensinam aos membros desta cultura a sentirem e perceberem seu valor pessoal a partir da comparação incessante entre seus atributos pessoais e aqueles que compõem o ideal das imagens e do espetáculo. A armadilha está na comparação com padrões não alcançáveis, muitas vezes de modo independente da quantidade ou qualidade das respostas emitidas. Nessa comparação, quase sempre o indivíduo é o único derrotado, pois desta insatisfação depende a operação que mantém a roda funcionando: mais consumo, mais comparações, mais buscas por adequação, mais insatisfação, e a roda retornando ao mesmo ponto. O responder relacional estabelece relações arbitrárias de modo a produzir comparações que impõe ao indivíduo uma condição sempre aquém dos padrões com os quais se compara. Na contingência em que busca atender aos padrões de renda e consumo o tempo é cada vez mais orientado para a obtenção do lucro como reforçador condicionado para as trocas, no entanto, esse nunca é suficiente, pois há sempre mais a ser consumido e “bem vivido”. Com isso, diminuem os repertórios que viabilizam contato direto com reforçadores de respostas, como contato familiar, afetivo-amoroso e com núcleo social próximo (amigos). A baixa densidade de reforço por contato afetivo e as restrições nas fontes de reforçamento também despontam como variáveis críticas na produção da depressão. Há certa crueldade na cultura hedonista que cobra beleza, juventude e felicidade como padrões de normalidade, indicando, por equivalência, que a vida deve ser vivida de modo eternamente jovem, eufórico e constantemente feliz. Por conseguinte, o contrário deveria ser evitado: o envelhecimento e o sofrimento apresentados como anormalidade, devendo ser evitados a todo custo, seja por esquivas emocionais ou de qualquer natureza, como medicalização e consumo. O processo natural – envelhecer e ter momentos de tristeza – tornado antinatural: derradeira armadilha pós-moderna.

A obra é instigante, dialógica dentro da psicologia e ainda com outras áreas de conhecimento, angustiante em um ponto no qual parece ser inevitável que o leitor se visualize em diferentes momentos durante a leitura, mas acima de tudo linear e coerente em suas análises. Tê-la chamado de ‘parte I’ foi uma excelente operação estabelecedora para aquilo que está prometido para a parte II: o foco em programas inovadores e de intervenção que possam contribuir como alternativas de produção de saúde mental. A depender da qualidade desta primeira parte, a segunda certamente valerá a pena!

NICO, Y.; LEONARDI, J. L; ZEGGIO, L. A depressão como fenômeno cultural na sociedade pós-moderna. Parte 1: um ensaio analítico comportamental dos nossos tempos. São Paulo, 2016.

Referências:

FERREIRA, D. C. & TOURINHO, E. Z. Relações entre depressão e contingências culturais nas sociedades modernas: Interpretação analítico-comportamental. Revista brasileira de terapia comportamental e cognitiva, 13, 20-36, 2011.

SKINNER, B. F. What is wrong with daily life in the Western world? American Psychologist, 41, 568 – 574, 1986.

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