[Entrevista] Bernard Guerin em “Uma Análise sobre Saúde Mental e Psicoterapia”

Bernard Guerin:  Entrevista para o Boletim Contexto (por Marcela Ortolan):

bg2O professor australiano Dr. Bernard Guerin concedeu a esta entrevista para o Boletim Contexto em que fala um pouco sobre a sua trajetória como pesquisador de comportamentos sociais, as suas relações com a análise do comportamento, o cenários da análise do comportamento na Austrália e na Nova Zelândia, pesquisa comunitária, saúde mental e psicoterapia. Suas reflexões e críticas sobre esses tópicos trazem questões importantes e também alguns pontos polêmicos, como o porquê de ele não realizar mais pesquisas socais em análise do comportamento apesar de utilizar seus princípios.

Read the original interview here.

Leia a entrevista completa a seguir.

1 – Como você se tornou um Analista do Comportamento?

Eu realmente não acredito que eu sou um analista do comportamento, ou sou qualquer coisa. Vou explicar em um minuto. Meu principal treinamento foi em psicologia social experimental que atualmente está quase que toda voltada para as teorias cognitivas (eu tive um antigo professor que ainda ensinava a maravilhosa psicologia social pré-cognitiva). Então, fui treinado para resolver problemas teóricos fazendo experimentos em laboratórios com humanos para testar hipóteses acerca dos processos cognitivos das informações sociais. E isso continuou durante toda a minha formação até o doutorado.

Contudo, mesmo antes de ir para a Universidade, eu comecei a ler uma grande variedade de ciências sociais e filosofia e mantive um forte interesse nas outras ciências. Então, quando eu iniciei a minha graduação escolhi estudar filosofia, lógica, física, matemática e psicologia. Acabei fazendo majoritariamente filosofia, lógica e psicologia e acabei decidindo fazer o meu Honours Year* em psicologia. Ambas, minha tese de Honours e de doutorado foram em psicologia cognitiva social.

Eu fui sortudo de ter um orientador que me tolerou lendo de forma ampla. No início do meu doutorado li de forma sistemática Foucalt, Deleuze, psicanalistas, pós-estruturalistas, sociologia, antropologia social, etc. Também me mantive fortemente ligado na etologia e quase fiz o meu doutorado em comportamento animal.

Acredito que todos esses interesses me deram uma visão de que era necessário mais para entender o comportamento humano do que qualquer campo do conhecimento poderia englobar. E como a analise do comportamento, a psicologia cognitiva social tem uma visão que pretende explicar ou ainda englobar todos esses outros campos do comportamento humano. A impressão é de que a psicologia cognitiva social (e mais tarde a análise do comportamento) poderia resgatar essas outras disciplinas e as colocar no caminho certo, ainda que mais tarde eu percebi que essas outras disciplinas não precisavam ser resgatadas por ninguém. Fui muito sortudo de ter percebido isso cedo. Então a maior parte das crises teóricas e disputas acadêmicas que acontecem hoje eu já vivenciei de outras formas e em outros momentos e agora eles parecem um déjà vu.

Todos esses contatos precoces lendo e assistindo a seminários também me deram uma outra vantagem que só percebi mais tarde. Quando o tempo veio mudando ideias e direções eu não estava assustado com as outras disciplinas e fui capaz de ir além daquilo com o que estava confortável. Encontrei vários acadêmicos que ficaram assustados de abordar novas áreas, mas eu aprendi cedo (por serendipidade) a apenas fazer o que tem de ser feito! Alguns pesquisadores que eu conheço ficaram assustados em começar a ler Foucault ou Deleuze, ou começar a realmente ler Marx ou ainda sociologia.

Na analise do comportamento um exemplo poderia ser o foco em “a antroplogia social é o Marvin Harris”, ainda que ele seja pouco expressivo na antropologia social e os analistas do comportamento nem ao menos leem os outros teóricos do seu campo de pesquisa. Talvez pareça assustador ou ameaçador tentar entender todos os muitos outros principais trabalhos da antropologia social mas eles tem muito mais para nos contar sobre o comportamento humano real e os comportamentos sociais se formos além dos seus jargões. Os analistas do comportamento, como em outras disciplinas, tendem a aderir aos autores que superficialmente parecem se assemelhar a aquilo que eles já estão dizendo. Eles poderiam aprender muito mais lendo em detalhes os grandes volumes das pesquisas de campo se realmente desejam entender como os comportamentos culturalmente modelados trabalham de verdade.

Pelo final do meu doutorado eu estava também percebendo que experimentos laboratoriais com humanos não estavam dando o que eles prometiam, e não apenas porque eles eram embasados na psicologia cognitiva social. Poderia ter levando mais tempo para que eu percebesse isso, mas com base nos trabalho de campo da etologia e da antropologia social eu sabia que nós poderíamos aprender mais e ajudar mais as pessoas com o uso de outras metodologias. Isso já aparecia na minha conclusão de doutorado: “… que nós devemos estudar as condições em vários cenários (i.e., contexto) ao invés dos padrões de respostas em si mesmo”.

O que eu realmente descobri nesse período da minha vida foi que, enquanto todos ao meu redor também queriam ajudar as pessoas e melhorar a vida das pessoas, o laboratório de experimentação e simulações (a propósito, eu também fiz um monte de simulações no computador trabalhando com o comportamento social de humanos) não estavam conseguindo atingir isso. Havia apenas repetidas promessas de avanços futuros. Eu queria muito conseguir algo mais concreto e palpável e usar métodos que se envolvessem mais na vida real das pessoas.

Novamente por sorte, como um estudante de doutorado, eu tinha amigos fazendo pesquisas nas áreas de modificação comportamental, a maioria em saúde e esporte. Eles não eram realmente analistas do comportamento mas me fizeram ler essa aérea. Eu ainda tinha muitas ideias erradas sobre análise do comportamento, mas ela era mais concreta e engajada com as pessoas do que o que eu estava fazendo naquele tempo, e as intervenções eram feitas ao invés de serem apenas promessas, ainda que parecessem superficiais e não na vida real.

Nesse ponto eu tive dois golpes de sorte (entre os muitos privilégios que eu tive). Primeiro eu consegui uma bolsa de Pós-Doutorado  na Universidade de Queensland que era aberta para qualquer tópico, então eu poderia estudar qualquer tópico que eu quisesse sem supervisão! O segundo foi quando, na minha primeira semana em Brisbane, a biblioteca da universidade fez uma grande promoção de livros usados os vendendo por um dólar cada. Fui logo no primeiro dia e voltei para casa com duas caixas com quase todos os livros do Skinner, mais Hoing, etc. Tudo por um dólar cada!

Desse ponto em diante, pelos próximos dois anos de Pós-Doutorado, eu trabalhei sistematicamente lendo (como eu sempre havia feito) cada livro e artigo do Skinner. Estranhamente, eu amei o livro Schedules of Reinforcement (Esquemas de Reforçamento) com o Ferster. Embora eles trabalhassem com um ambiente ou contexto totalmente empobrecido (do ponto de vista dos meus estudos em etologia), eles observavam, descreviam e variavam cada parte das relações funcionais daquele ambiente empobrecido. Eles estavam mudando um comportamento real, embora em um ambiente empobrecido. De uma forma engraçada, ler esse livro por duas vezes me deu o mesmo sentimento de ler por completo um livro (ou normalmente livros) de um trabalho de campo detalhado de um antropologista social, exceto que os últimos são mais contextualizados.

Não gostei tanto dos últimos livros do Skinner sobre seres humanos porque ele falhou em seguir a mesma metodologia, ele apenas teorizou sobre os achados do seu trabalho inicial e não fez observações sistemáticas do comportamento humano. Tendo visto e lido o intrincadas complexidades do comportamento humano na antropologia social e outros lugares, as suas generalizações grosseiras não me agradaram. Ele apresentou bons argumentos para uma compreensão materialista e não essencialista do comportamento humano, o que foi ótimo, mas muitos outros autores que eu já havia lido também o fizeram.

Depois dessas leituras, por alguns anos, tentei vários experimentos com comportamento humano, agora usando os métodos “operantes”,  entretanto eu sempre encontrava o mesmo problema que nos meus velhos experimentos em psicologia cognitiva social: eram artificiais, prometiam levar a aplicações incertas no futuro, perdiam o contexto – que eu sabia serem a parte mais importante como apontado pela antropologia social – tornavam ainda mais abstrato lidar com a falta de contextos reais, etc.

O meu estágio final como Analista do Comportamento foi conseguir um emprego na Nova Zelândia onde a Análise do Comportamento era grande e excelente, principalmente nas pesquisas com comportamento animal (um dia alguém deveria calcular a porcentagem de artigos publicados no JEAB por pesquisadores da Nova Zelândia!). Aprendi muito mais sobre análise do comportamento com pessoas de lá. Comecei a ir aos congressos da ABA (algo em torno de 10 anos seguidos) e percebi que outros estavam tendo os mesmos problemas com experimentos na pesquisa experimental com humanos, mas ninguém estava falando muito sobre os problemas e nós todos estávamos apenas seguindo sozinhos como se nada estivesse errado.  Comecei a chamar isso de Professional acquiescence (condescendência profissional).

O auge do meu período como analista do comportamento foram os dez meses do meu sabático em que visitei quase todos os programas de Análise do Comportamento nos Estados Unidos e no Japão. Passei dois meses em Morgantown (West Virginia) e dois meses em Auburn (Alabama) e aprendi um monte, mas visitei também a maioria dos outros programas por períodos mais curtos (estive duas vezes em Reno!). Não apenas pude aprender um monte como vi em primeira mão os problemas que todos estavam tendo com as pesquisas com comportamento humano. Aquele ano também foi memorável porque eu fui para os principais congressos da ABA, muitos congressos de Análise do Comportamento estaduais nos Estados Unidos, e no congresso da ABA japonesa e nos congressos de Análise do Comportamento em Londres e na Nova Zelândia, tudo isso em dez meses!

Uma coisa que aquele período sabático fez foi me convencer que as pesquisas com comportamento humano em todos os campos, não apenas em análise do comportamento, precisam ser mais engajadas com as pessoas e as suas comunidades porque elas constituem sistemas complexos. Quando eu voltei à Nova Zelândia, imediatamente iniciei um projeto que durou 9 anos de pesquisa participante comunitária com uma comunidade Somali. Não fiz mais nenhum experimento de laboratório depois disso. Eu também comecei a pesquisar com colegas Maori e então, quando eu retornei para a Austrália alguns anos mais tarde, um projeto de pesquisa participante comunitária com Indígenas Australianos que durou cinco anos. Isso tudo feito em parceria com grandes colegas, porque não se pode fazer pesquisa comunitária sozinho. E uma vez que você tenha feito esse tipo de pesquisa, não há como voltar atrás. Você aprende muito mais e com muito mais certeza e validação.

Então, finalmente respondendo a sua questão, eu não me vejo com um analista do comportamento, ainda que siga as suas principais ideias e princípios. Não faço pesquisas para provar ou promover a análise do comportamento nem para mostrar que ela é superior e deveria sobrepujar ou resgatar as outras disciplinas. Eu apenas uso muitas das suas ideias sobre metodologias e formas de pensar sobre as pessoas.  Não é um grupo social que eu quero promover sobre outros ainda que a maioria dos analistas do comportamento que eu conheça sejam bons amigos. Entretanto, eles não são bons amigos porque eles pertencem ao clã da análise do comportamento ou são “um dos nossos”. Isso não é diferente da antropologia social para mim. Uso muito da suas metodologias e as suas ideias sobre relações sociais e culturais, mas eu não desejo ‘ser’ um antropólogo social e promover esse área sobre outras áreas.

 

2 – Como é o cenário da Análise do Comportamento na Austrália e na Nova Zelândia?

Um dos meus problemas inicias quando eu me tornei obcecado pela análise do comportamento foi que não havia nenhum analista do comportamento na Austrália, exceto por alguns analistas do comportamento que trabalhavam com autismo ou alguns modificadores de comportamento que talvez tivessem lido algo do Skinner. Contudo, um pouco antes de me mudar para a Nova Zelândia, Vicki Lee chegou na Austrália (ironicamente vindo da Nova Zelândia) e nós tivemos um bom contato e chegamos a organizar um simpósio de um dia na conferencia da Sociedade Australiana de Psicologia. Aprendi um monte com a forma dela pensar e recomendo para todos que leiam os livros e artigos dela.

Na Nova Zelândia a situação era o oposto, e todas as Universidades (eles tem apenas cinco) tem um laboratório que pesquisa comportamento operante com várias pesquisas sendo publicadas no JEAB. Quando eu retornei para a Austrália as coisas estavam ainda piores e não havia programas de análise do comportamento aqui. A maioria das pessoas próximas à análise do comportamento trabalham com autismo ou educação, ainda que isso aconteça também nos Estados Unidos e no Brasil.

 

3 – Como é o seu trabalho baseado em metodologias comunitárias?

Há um grande número de linhas nas pesquisas comunitárias que vem da psicologia, antropologia social, sócio-linguística e de outras áreas. Os pontos principais  são o envolvimento com as pessoas e participar ao longo do tempo. Você não entrevista as pessoas, mas conversa com elas repetidamente e informalmente. A principal vantagem que faz com que você permaneça fazendo esse tipo de pesquisa e não queira mais voltar ao laboratório é que ao longo do tempo você checa e valida quaisquer dos seus achados discutindo suas pesquisas com as pessoas da comunidade e eles logo lhe contam se você está ou não está entendendo ou ainda se o seu entendimento é muito simplista.

Isso muda toda a noção de “conhecimento baseado em evidências” para um sistema complexo como as pessoas e o mundo em que elas vivem. Para mim, você não pode conseguir evidências para um comportamento que vem de um sistema complexo quando você busca isso nos contextos empobrecidos de laboratório ou em estudos muito controlados. Eu sei porque eles estão tentando controlar as variáveis (eu costumava fazer isso), mas sei que isso não funciona dessa forma em sistemas complexos. Na verdade isso são os princípios da análise do comportamento em ação: se você olha para o comportamento em um contexto muito artificial e controlado esse contexto produzirá comportamentos que não vão acontecer em outros contextos (como quando uma pessoa vai para casa). Essas condições controladas são contextos especializados em si mesmos e não há razão para que o comportamento encontrado nesses contextos aconteça em qualquer outro lugar no mundo da pessoa.

 

4 – A Análise do Comportamento pode contribuir para a pesquisa comunitária de alguma forma? O que a Análise do Comportamento pode aprender com eles?

Voltando aos meus pontos iniciais, a análise do comportamento é comumente apresentada como uma entidade permanente ou um conjunto fixo de crenças ou ideias, enquanto vejo todas as áreas ou disciplinas como fluídas e eles apenas se tornam entidades quando formam associações ou clubes (que normalmente acabam enfraquecendo as áreas). Então, vejo a resposta mais como: a pesquisa comunitária pode certamente usar algumas coisas aprendidas da análise do comportamento e vice-versa. Por exemplo, estou tentando guiar os pesquisadores que fazem pesquisa comunitária a fazer observações e documentar sistematicamente mais as relações funcionais entre o conjunto complexo de contextos das pessoas e seus comportamentos, aos invés de buscar teorias essencialistas.

A análise do comportamento também pode aprender com a pesquisa comunitária a realmente ir até a prática cultural e se envolver com ela ao invés de apenas falar sobre ela ou fazer modelos experimentais disso. Como eu escrevi antes, uma vez que você tenha feito isso não tem mais volta! E, ainda seguindo os próprios princípios da análise do comportamento, se as contingências estão lá fora, no ambiente da pessoa, então você deve estar lá também. Com a pesquisa comunitária você pode observar e documentar por longos períodos como mudanças do ambiente levam a mudanças no comportamento e também pode experienciar as relações funcionais por você mesmo, em primeira mão, porque você também participa desses contextos diretamente. Você pode fazer intervenções para mudar os ambientes se eles funcionam com as comunidades e não impondo as intervenções.

 

5 – Recentemente você publicou três livros que fazem parte de uma triologia. Você pode nos contar sobre os princípios que ligam os três livros?

Os três livros são uma tentativa de mostrar como nós podemos repensar várias ideias da Psicologia, do comportamento social e da Análise do Comportamento. Não com uma “grande teoria” definitiva ou mesmo uma coerente, mas com novas formas de pensar sobre a matéria em estudo. Isso tudo com o objetivo de explorar novas observações e intervenções ao invés de grandes teorias, e é direcionado a repensar a saúde mental, o que eu vou explicar em breve.

O primeiro livro aborda várias das questões filosóficas ou conceituais e muitas das possibilidades de repensar serão familiares a quem conhece Análise do Comportamento ou o trabalho de Arthur Bentley. Contudo, o livro trás uma novidade: ele repensa a filosofia ocidental em termos de consequências sociais do uso da linguagem, aplicando isso na própria filosofia ocidental (Capítulo 5 e Apêndice). A única certeza ou verdade das palavras é o que as pessoas fazem quando falamos, como elas aprenderam a responder. Pensando dessa forma o objetivo difuso da filosofia ocidental tem sido desde sempre prover argumentos de como as palavras e teorias podem ser ditas para serem a mais certa verdade.

O segundo livro faz o caminho de integrar o que nós sabemos sobre o comportamento das pessoas em todas as ciências sociais e na Análise do Comportamento. Eu também uso esse livro como um livro didático para ensinar análise do comportamento social. Para um analista do comportamento é necessário ir além das micro-contingências da pesquisa com animais e olhar mais amplamente para as relações contingentes menos bem definidas entre os nossos contextos de vida e como nós nos comportamentos (claro, sem negar as micro-contingências presentes).

Então revisei o que nós sabemos sobre os contextos mais amplos das relações sociais, os contextos para as muitas práticas culturais, os efeitos de diferentes contextos econômicos, os contextos de vida que provêm diferentes oportunidades para pessoas diferentes, e os efeitos dos contextos históricos. Há ainda a revisão do que nós sabemos sobre os contextos de onde cada linguagem surgiu, o que vai bem além das categorias de comportamento verbal de Skinner e que eu acho muito mais prática e útil para a linguagem da vida real ou para a análise do discurso. Eu então aplico isso de uma forma mais radical para contextos externos ao pensamento e como o pensar é na verdade observável se nós o tratarmos como contingências verbais.

 

6 – Você acabou de publicar o terceiro livro “How to Rethink Mental Illness” (Como repensar as doenças mentais, sem tradução para o Brasil). Você poderia nos contar sobre as suas concepções sobre saúde mental?

Esse livro segue os outros dois livros ao expandir o que nós entendemos pelo ambiente em que as pessoas estão inseridas e aplicamos isso às questões de saúde mental. O comportamento das pessoas é modelado pelos seus ambientes, então os comportamentos relativos às doenças mentais são presumivelmente modelados por ambientes ruins. Se nós queremos mudar esses comportamentos, nós temos que mudar os ambientes em que esses ocorrem. O conceito é antigo: os comportamentos considerados doença mental são apenas comportamentos normais que todos nós fazemos, mas eles se tornaram errados ou exagerados por conta de ambientes ruins e em algum momento se tornaram disfuncionais.

Por isso, os truques são primeiro descrever os comportamento tipicamente rotulados como sendo “problemas de saúde mental”, depois descrever os ambientes nos comportamentos comuns de “doença mental” surgem e, por último, descrever as relações funcionais comuns que existem entre esses dois.

Para esses comportamentos, eu “desconstruí” o DSM para encontrar todos os comportamentos que são listados como critério diagnóstico das principais doenças do DSM. Isso me possibilitou ver os comportamentos que realmente são observados e usados nos diagnósticos. Como o esperado, a maioria deles são comportamentos comuns, mas que estão em um ambiente conflituoso e também se apresentam de forma crônica ou se tornam exagerados. Também fui capaz de sugerir a tentativa de um novo caminho para agrupar esses comportamentos “brutos”: em 9 grupos funcionais ao invés de agrupamentos baseados na doença ou na topografia dos comportamentos como acontece no DSM.

Para os ambientes, eu olhei para uma ampla gama de ambientes naturais ou contextos: relações sociais, culturais, históricas, econômicas e as oportunidades disponíveis para as pessoas (Capítulo 2). Esse são todos contextos vitais para a modelagem de qualquer dos nossos comportamentos. Então explorei alguns contextos mais específicos em que as pessoas podem estar vivendo e ter seus comportamentos modelados: opressão (mulheres, pessoas em situação de pobreza, refugiados), devastação (populações indígenas) e a modernidade.

O último contexto é interessante porque a modernidade é o maior contexto em que todos nós vivemos e eu sugiro que muitas das doenças mentais comuns vem puramente dessas condições novas em que nós somos forçados a viver. As contingências da modernidade vem:

  • de mudarmos de uma situação em que a maioria das nossas relações sociais são baseadas na família para uma situação em que a maioria das nossas relações são com estranhos que não tem nenhum obrigação ou responsabilidade conosco, e que nós podemos influenciar pelo dinheiro ou por meio de outros estranhos (polícia, tribunais, etc.);
  • da imposição da forma capitalista de distribuir recursos em todas as facetas das nossas vidas, mudando todas as contingencia entre os nossos comportamentos e seus resultados;
  • do uso de burocracias artificiais que modelam 90% do nosso comportamento dentro de padrões específicos;
  • da mudança de contextos patriarcais baseados na família (como os descritos por Freud no início do século XX) para sociedades patriarcais baseadas em relações com estranhos.

Para as relações funcionais entre esses ambientes e os comportamentos eu notei que a maioria dos problemas de saúde mental envolvem relações funcionais que por várias razões não são fáceis de serem observadas. Isso significa que psiquiatras e outros simplesmente não têm procuraram o suficiente pelas relações funcionais e não têm métodos para fazê-lo (a antropologia social faz um trabalho melhor na observação de ambientes reais). A armadilha é que quando você não consegue facilmente observar as relações funcionais então a explicação é atribuída a construtos hipotéticos tais como personalidade, cérebro, DNA, evolução, raça, etc, ou, no caso aqui analisado, a uma doença metal fictícia subjacente.

Então o que isso significa é que psiquiatras e psicólogos desde o final do séc. XIX têm se deparado apenas com aqueles casos em que as relações funcionais são difíceis de observar e não têm gastado muito tempo observando essas pessoas nos seus contextos naturais. Esse profissionais não tem tido tempo de fazer isso (e isso não é culpa deles) então “causas” e teorias abstratas tem sido inventadas pela psicologia e pela psiquiatria. Outros casos de conflitos e problemas da vida são dados a assistentes sociais, coaches, conselheiros, autoridades religiosas ou são apenas contornados pelos amigos e pela família.

Eu vou dar alguns exemplos para deixar isso claro. Se a pessoa está em uma crise (chorando normalmente e ansioso) porque ele tem uma grande dívida, então as relações funcionais são fáceis de ser observadas  e então esses casos serão encaminhados a uma assistente social ou a um consultor financeiro, provavelmente. Se uma pessoa está ansiosa demais para sair de casa porque tem um cachorro perigoso solto na rua, então parece haver uma relação funcional fácil para esse conflito e nós podemos chamar a carrocinha da prefeitura para resolver o problema ou então pedir ao dono que mantenha o cachorro preso. Mas se uma pessoa chora muito sem nenhuma razão aparente e está ansiosa demais para sair de casa mas não consegue dizer o porquê, então nós não conseguimos identificar facilmente as relações funcionais e esse comportamentos serão encaminhados a um psicólogo ou um psiquiatra.

 

7 – Como essa análise nos faz repensar a saúde e a doença mental?

Questões de saúde mental, dessa forma, são meramente essas tentativas de resolver os problemas normais da vida que com comportamentos que se tornaram exagerados ou presos em ambientes ruins e que são difíceis de ter as suas relações funcionais descritas. De outra maneira, eles não são diferentes dos outros comportamentos: ainda são apenas comportamentos modelados pelas relações funcionais em nossos mundos. Eles não formam uma classe especial de comportamentos de forma nenhuma e não há nenhuma “doença” especial subjacente. Se há padrões nesses comportamentos, então é porque o ambiente tem padrões ou é estruturado.

Uma situação ubíqua, de difícil observação, das relações funcionais são aquelas em que a linguagem é usada. Nós raramente sabemos ou podemos observar a relações funcionais sociais que nos levam a dizer o que dizemos, então usos de linguagem que se tornaram disfuncionais serão comuns e serão encaminhado para os psiquiatras e psicólogos para tratamento. Isso mostra o porquê do grande crescimento das terapias cognitivas (da linguagem) e a ênfase das terapias de terceira onda em lidar com os usos da linguagem normal que de alguma forma deram errado. Nesses casos nós precisamos de longas e difíceis observações das relações sociais que estão modelando o que nós falamos e pensamos; quem são as audiências para nossos pensamentos? Quem modelou os nossos pensamentos?

A mensagem para nós de tudo isso é que casos de “doença mental” são precisamente aqueles com relações de contingência difíceis de observar, então muito tempo e observação participante é necessária para desvendar as relações funcionais advindas desses comportamentos normais que estão em ambientes ruins e por isso se tornam crônicos ou exagerados assim que a função inicial do comportamento se tornou disfuncional. Analistas do comportamento têm as análises para lidar com isso de uma forma melhor, contudo eles têm estado muito imersos em analises de micro relações funcionais e não dos amplos contextos da vida humana, e eles não têm usado os métodos participantes para uma melhor observação contextual.

 

8 – Recentemente você publicou um artigo na Revista Perspectivas em Análise do Comportamento, que é um periódico brasileiro, sobre como diferentes psicoterapias funcionam. Nesse artigo você olhou para o comportamento dos psicoterapeutas e descobriu que as diferentes terapias são muito parecidas. Baseado nos seus estudos de saúde mental, você acha que deveríamos mudar a nossa forma de fazer psicoterapia? E, em caso positivo, em que caminhos deveriam acontecer essas mudanças?

Esse artigo segue a linha do livro sobre saúde mental e poderia ter sido incluído nele se eu tivesse feito essa análise anteriormente. A questão foi: se comportamentos de “doença mental” são apenas comportamento normais modelados por ambientes ruins que não deram certo (se tornando crônicos ou exagerados) e se tornaram disfuncionais, então o que os psicoterapeutas fazem para mudar isso? Parti da premissa de que a maioria das psicoterápicas são efetivas de algumas formas (elas não podem ser totalmente equivocadas!) , mas que as “teorias” e palavras ditas sobre o que acontece na terapia são provavelmente fictícias em grande parte (mas de uma forma bem intencionada).

O que eu fiz foi similar com a “desconstrução” do DSM que descrevi antes nessa entrevista. Peguei dois dos mais conhecidos livros didáticos dessas psicoterapias e listei todos os objetivos de cada terapia e todos os comportamentos feitos na terapia. Isso me deu uma grande lista para cada uma delas e então adicionei na leitura mais alguns livros didáticos sobre psicoterapia, livros escritos pelos próprios terapeutas, li transcrições de sessões e assisti a um grande número de vídeos dessas psicoterapias acontecendo.

Então, compilei um grande número de objetivos terapêuticos e comportamentos de 19 das mais conhecidas terapias, incluindo psicanálise, terapia cognitivo-comportamental, ACT (terapia de aceitação e compromisso), terapia narrativa, terapia feminista, etc. Depois discuti como essas “teorias” e “conceitos” de cada uma das terapias poderiam ser vistos por uma mesma moldura comportamental/contextual. O que encontrei foi que havia uma grande quantidade de semelhanças depois que você tira as elucubrações teóricas das palavra que estavam sendo usadas e olhava para os comportamentos concretos.

Para dar um exemplo, a terapia existencial fala sobe conquistar um importante objetivo pela terapia: a “autenticidade”. De um ponto de vista contextual, isso significa que a pessoa deveria ter uma forma de pensar (isso é, uma forma de falar) sobre si mesmo e sua vida que seja mais aceitável ou explicável pelas suas principais audiências. Isso se torna conceitualmente idêntico à ênfase das terapias narrativas em construir e modificar as histórias que as pessoas contam sobre elas mesmas para as suas audiências e também à ênfase junguiana de encontrar novas formas de pensar e falar o “self” durante o processo de “individuação”. Em todos esses casos, e em alguns mais, isso é o processo de remodelar a linguagem que uma pessoa usa para falar sobre si mesmo então isso será mantido pelas suas principais audiências (que não precisam concordar com isso, perceba, apenas modelá-las; você pode modelar as crenças de alguém ao discordar delas). Essa remodelagem social na terapia é realizada por seu terapeuta, é claro.

Segundo esse exemplo para a fase de intervenção, a maioria das pessoas tem conflitos e problemas com as suas “histórias sobre si mesmos” nesses contextos de vida:

  • quando a história não e congruente com a realidade
  • quando a pessoa está tentando lidar com audiências múltiplas e contraditórias (pessoas importantes na sua vida que esperam – consequenciam – diferentes histórias sobre quem você é)
  • ou quando as histórias são boas, mas não conduzem aos recursos necessários para viver (contar uma história sobre quem você é em uma entrevista de emprego sendo honesto; ou histórias antigas da sua vida que já não são mais úteis no contexto atual)

Então essas palavras diferentes da Psicoterapia Existencial, Psicoterapia Analítica e da Terapia Narrativa são na verdade sobre remodelar comportamento verbal sobre o “self” por meio do uso do terapeuta como uma nova audiência. Trabalhar com o terapeuta nisso é bom porque é uma nova audiência com quem trabalhar para que a mudança aconteça, mas isso também é ruim porque as audiências naturais “em casa” pode ser mais poderosa e então a modelagem da terapia falha em sua manutenção ou podem mesmo se tornar a causa de mais conflito.

O que eu encontrei fazendo esse tipo de trabalho de tradução foi que todas as terapias – quando nós ignoramos todas as teorias, palavras, o marketing, e as explicações – eram muito similares tantos em seus objetivos quanto nos comportamentos que os terapeutas emitiam dentro da terapia. Na sequência, estudei os focos principais de todas as terapias e, ainda que elas tivessem alguns procedimentos diferentes e que usassem palavras e teorias muito diferentes para “explicar”, os principais focos eram:

  • A relação social entre o cliente e o terapeuta
  • Modelação, role-play e tarefas para casa
  • Resolução de problemas
  • Lidar com as relações sociais
  • Lidar com o pensando
  • Lidar com a fala
  • Olhar para contextos mais amplos

Todas as terapias estão fazendo essas coisas em um grau maior ou menor e de diferentes maneiras. O terapeuta era a audiência para modelar a maioria desses comportamentos, o que novamente levanta a questão de como esses comportamentos são mantidos quando o cliente volta para as suas velhas audiências e contextos de vida. Vou falar mais sobre isso abaixo.

Vou terminar com outra grande consideração sobre esse artigo e sobre o livro, colocando a terapia em uma perspectiva histórica. O artigo termina comparando os objetivos e comportamentos que acontecem na prática dos assistentes sociais e encontrou que assistentes sociais estão usando procedimentos quase iguais aos dos psicólogos, contudo de maneiras diferentes e descrevendo-os com palavras diferentes (o termos deles “reestruturação” abrange uma boa parte do trabalho da Terapia Cognitivo Comportamental). O que eles fazem melhor  que os psicoterapeutas é que: eles vão mais até os contextos de vida das pessoas observar, participar e intervir ao invés de apenas ficar no consultório; e eles consideram as questões econômicas, políticas, patriarcais e as oportunidades no contexto analisado muito mais do que a maioria dos terapeutas (exceto das terapeutas feministas em alguns casos).

O que isso sugere é que não há mais um lugar ou papel “especial” para a psicologia e a psiquiatria, pois as minhas análises comportamentais/contextuais apontam que:

  • esses profissionais não fazem nada de especial ou único na terapia
  • não há mais nenhum domínio especializado da mente, alma ou psique
  • não há mais nenhuma “doença” especial que leva a comportamentos de doença mental, apenas ambientes ruins que precisam ser mudados

Isso pode sugerir que as psicoterápicas tem uma ênfase importante nas questões do uso da linguagem pois a Terapia Cognitivo Comportamental (Cognitiva = uso da linguagem) e as terapias de terceira onda focam nisso. Contudo, eu também sugiro no artigo que essa ênfase no uso da linguagem pode ter sido modelada por outra razão: para lidar com o problema de como o comportamento que é modelado pelo terapeuta pode ser mantido fora do consultório, quando o cliente volta para casa. Se o terapeuta participasse mais na vida concreta dos clientes, como os assistentes sociais fazem, então seriam capazes de modelar os comportamentos diretamente nesses ambientes e pelas pessoas que são mais prováveis de o cliente estar envolvido normalmente. A ênfase na cognição ou na modelagem da linguagem deve ser na verdade apenas uma forma de tentar garantir a manutenção fora do consultório do terapeuta.

Outro resquício histórico é também a grande ênfase de todas as terapias na relação terapeuta-cliente. É óbvio que ela é importante, mas na verdade ela apenas surge porque são dois estranhos que estão em uma relação contratual – eles não se conhecem. Quando a família, a comunidade ou a igreja estava lidando com os problemas eles envolviam pessoas que já possuíam um relacionamento e realmente conhecem muito uns dos outros. Isso é, a ênfase em construir uma relação entre o terapeuta e o cliente é um artefato da modernidade em si mesmo.

Assim, o futuro que eu prevejo é esse: que as pessoas vão continuar a ter problemas nos seus ambientes e tentar mudar esses ambientes com comportamentos normais que se tornarão crônicos ou distorcidos e levarão a mais problemas e disfunções. Para mudar essas questões de “saúde mental”, contudo, nós precisamos de especialistas que sejam especializados em ambientes de vida comum e como eles conduzem (pelas suas relações funcionais) a problemas. Nós não precisamos de especialistas em psicologia geral, psiquiatria, assistentes sociais ou ainda de analistas do comportamento. Essa conclusão decorre das análises comportamentais/contextuais em que eu acredito.

Por exemplo, se uma pessoa jovem tem problemas com drogas então ela não precisa de um “especialista” que entenda genericamente de comportamento humano ou da mente, o que ela precisa é de um especialista nesses ambientes que levam as pessoas jovens a terem problemas com drogas e como nós podemos mudar esses ambientes. Isso vai envolver alguém com bom conhecimento participativo de problemas da cultura, econômicos e relacionamentos baseados em uma boa compreensão da modernidade, ao invés de alguém com conhecimento genérico de uma “mente” humana abstrata ou teorias da cognição.

 

Obrigada por seu tempo, Marcela.

5 comentários sobre “[Entrevista] Bernard Guerin em “Uma Análise sobre Saúde Mental e Psicoterapia”

  1. SENSACIONAL! Gostei demais de “o que encontrei foi que havia uma grande quantidade de semelhanças depois que você tira as elucubrações teóricas das palavra que estavam sendo usadas e olhava para os comportamentos concretos.” Vou correr atrás e ler um pouco mais esse Guerin! Ele, elegantemente, puxa nossas orelhas! Marcela Ortolan, tenho que admitir que perdi uma grande oportunidade de aprender mais quando estivemos vizinhas! Nunca é tarde. Vou reler tudo e pensar. Ótimos esclarecimentos. Uma pegada PESADA, mas… na real! Valeu! Gracias!

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