[Entrevista] Kester Carrara fala sobre Análise do Comportamento e políticas públicas no Brasil

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O professor doutor Kester Carrara é livre docente do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciência da Unesp em Bauru, um dos nomes mais importantes da Análise do Comportamento no Brasil. Dentre seus trabalhos mais reconhecidos está o livro originado de sua tese de doutorado “Behaviorismo Radical: Crítica e metacrítica” da editora Unesp. Kester é líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Delineamentos Culturais (GEDEPEC) e fundou recentemente a Rede Nacional de Análise Comportamental da Cultura e Políticas Públicas (RNACCPP)  num esforço para integração de analistas do comportamento que produzem na área de delineamentos culturais com interesse nas políticas públicas. Você pode conferir mais sobre no site do grupo clicando aqui.

É principalmente sobre a relação entre a Análise do Comportamento e as políticas públicas e sobre esta articulação nacional que se forma, a RNACCPP que Carrara falou nesta entrevista. Boa leitura!

A version in english can be found here.

Conte-nos um pouco sobre a sua trajetória de formação acadêmica e no campo da pesquisa. Como ela o levou ao tema da cultura e das políticas públicas?

Meu mestrado foi na PUC, meu doutorado e livre-docência na Unesp. No segundo ano da graduação comecei a fazer contato com a Análise do Comportamento, ouvindo atentamente as aulas de José Arthur D’Incao, então recém-egresso da Experimental da USP, orientando da profa. Carolina Bori. Também aprendi com Maly Deliti, com o excelente antropólogo Hubert Prudant Hademakers, com Jerusa Vieira Gomes e Geraldo Paiva. Depois, fui orientando de Sérgio Luna, no Programa de Psicologia da Educação da PUC. Ali também aprendi com José Severo de Camargo Pereira e com uma dupla brilhante em filosofia da ciência, Octany Silveira da Motta e Leônidas Hegenberg. Meu doutorado seguiu na Unesp, a partir de um projeto que já havia começado na Unicamp e que acabou se consolidando no Programa de Educação de Marília. Dessa tese se originou meu primeiro livro, Behaviorismo Radical: Crítica e Metacrítica. Em todas essas instâncias acadêmicas meu interesse primordial, desde 1970, foi aprender Análise do Comportamento, objetivo que é ainda central na minha vida profissional. É fato que nessa época havia poucos cursos de pós, apoio institucional e fomento à pesquisa limitados e literatura escassa no país. Por exemplo, lembro-me de, por ocasião do doutorado, ter passado dias, meses na biblioteca da Unesp de Marília, fazendo consulta na coleção volumosa do Psychological Abstracts. Mas devo confessar que, apesar de cansativa, era uma atividade que eu gostava de fazer. Apesar de meu amadurecimento intelectual com o doutorado e a livre-docência e, com isso, certa verticalização de minha autocrítica teórica em relação ao Behaviorismo Radical, sempre mantive otimismo em relação à possibilidade de contribuição comportamentalista para melhores condições de vida em sociedade. Nestes tempos, trata-se de um “otimismo contido” (no sentido em que meu querido amigo José Antonio Damásio Abib utiliza essa expressão em seu artigo de 1993 sobre Psicologia enquanto ciência, publicado na Revista Teoria e Pesquisa). É seguro que sou hoje mais cético sobre a possibilidade de uma verdadeira revolução comportamental no sentido de James Holland. Já não penso fielmente nos mesmos termos em que comecei, lá pelos anos 80, a rascunhar análises e proposições do que viríamos a designar, anos mais tarde, como Análise Comportamental da Cultura. Porém, constituir grupo de pesquisa, desenvolver projetos de produtividade com apoio do CNPq e participar de debates com outros analistas em congressos foi um arranjo de contingências “intuitivamente perfeito” para manter-me envolvido com várias frentes na vertente dos delineamentos culturais. Daí às discussões sobre possíveis contribuições comportamentalistas para a formulação de políticas públicas foi um passo. Tem sido meu interesse de pesquisa majoritário há vários anos.

Como surgiu a Rede Nacional de Análise Comportamental da Cultura e Políticas Públicas (RNACCPP)?

Essa iniciativa é recente e conta com o apoio do pessoal do meu grupo de pesquisa, o GEPEDEC. A ideia é a de encontrar uma forma de articulação constante e consistente dos analistas comportamentais interessados em práticas culturais, no Brasil, com vistas a compartilhar projetos, bibliografia e propostas de intervenção em políticas públicas e de outros segmentos sociais organizados. A RNACCPP não é uma instituição formal, senão que apenas se constitui de uma iniciativa para viabilizar a cooperação em pesquisa e iniciativas de intervenção em um território nacional imenso pelo qual os pesquisadores estão distribuídos. Pretendemos que essa rede se consolide e possa gerar propostas para contribuir com o aperfeiçoamento de programas públicos, gerar conhecimento acurado e proporcionar a aproximação entre analistas da área de práticas culturais. O primeiro movimento de filiação já apresentou resultado importante: fizeram uma devolutiva positiva ao nosso primeiro convite à filiação mais do que 130 profissionais. O site da RNACCPP já está quase pronto e prevemos para o final do mês de agosto a disponibilização de novos recursos e estratégias de aproximação e cooperação, independentemente de que nós, participantes, pensemos de maneira menos ou mais distintas em termos de pontos de vista conceituais ou aplicados na nossa área.   

Pode nos contar um pouco do que tem sido produzido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Delineamentos Culturais (GEPEDEC)?

O grupo é cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq e certificado pela Unesp desde 2008. Foi por nós criado para assegurar um espaço de estudos mais aprofundados de textos, formulação e discussão de projetos, local de encontro com orientandos e alunos de graduação e pós que trabalham conosco. Ali já discutimos os mais diversos temas que constituem o entorno da Análise Comportamental da Cultura. Em geral, projetos de pesquisa, particularmente de mestrandos e doutorandos, têm sido produzidos e discutidos no âmbito do GEPEDEC.

Como você avalia a importância da RNACCPP para o crescimento do tema das políticas públicas dentro da pesquisa e atuação do analista do comportamento?

A RNACCPP é uma iniciativa que só pode ser reconhecida como referência na medida em que produza resultados de pesquisa e aplicação que ganhem visibilidade também no cenário extra-acadêmico. A funcionalidade dos princípios da Análise do Comportamento convence mais o público externo do que explicações conceituais sobre nossos achados de pesquisa. Se isso faz sentido, uma organização como essa rede de cooperação, ainda que informalmente estabelecida, pode adquirir crédito junto à sociedade na medida em que contribua para as mudanças sociais do país na direção de uma sociedade mais justa, transparente e solidária. Esperamos que a RNACCPP traga bons frutos. Pessoalmente, em função da idade, em breve (mas com data ainda incerta) devo me aposentar. Espero, junto com o pessoal do GEPEDEC, deixar esse legado aos mais jovens, sejam eles do campus de Bauru ou de outras universidades brasileiras.

Como anda a produção da Análise do Comportamento no campo das políticas públicas no Brasil?

Continua muito fértil, com iniciativas novas aparecendo a todo tempo nos diversos “cantos” do país. Penso que o Brasil é o lugar onde coincide um significativo número de analistas do comportamento e (infelizmente), uma demanda social muito alta por renovação de políticas públicas que atendam, de fato, as expectativas de uma vida social fraterna, igualitária, justa e solidária. Onde as demandas são mais intensas parece haver motivação ampliada para criar soluções comunitárias mais rápidas e efetivas. Se assim for, espera-se, por exemplo, que os graves e extensos problemas sociais dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento sejam motivo para criação emergencial de modos de organização que, não chegando a (nem devendo) constituir-se como tecnocracias, possam, em contrapartida, desfrutar dos achados científicos para um desenvolvimento saudável sob luzes da transparência ética que deve refletir nas políticas públicas.

Há alguma experiência em outros países que se assemelhe ao que tem sido construído aqui?

A produção científica, como já mencionei, é, em certa medida, “empurrada” pelas demandas sociais. Quando consultamos, por exemplo, a organização Transparency International, esperamos menos que soluções para problemas surjam tendo como foco os países nórdicos e muito mais, em contraposição, que propostas de solução resultem de movimentos político-ideológicos e desenvolvimento científico em países latinos. Talvez isso não seja uma regra, porque trata-se, aqui, de mera especulação e não tem substrato empírico. Mas pode fazer algum sentido. Se o faz, é natural que tenhamos esperança de que possamos ser os propositores – como se costuma dizer – os protagonistas dos problemas e, também, de boas soluções. Nesse caso particular da Transparency, para conhecimento de uma análise preliminar aplicada ao problema da corrupção, sugiro a leitura de “Corrupção e seleção pelas consequências: uma análise comportamental”, de Carrara, K. e Fernandes, D. M., em Psicologia: Teoria e Pesquisa, 2018, vol. 34.  Organizados em associações, órgãos de representação categorial e iniciativas livres de regras estreitas, como a RNACCPP, talvez corroboremos o dito “todos juntos somos fortes”.

Outros campos da Psicologia, como a Psicologia Social e a Psicologia Comunitária, têm longo histórico de pesquisas e produção acerca das políticas públicas nas quais a abordagem analítico-comportamental não é o principal referencial teórico e metodológico. O que pode a Análise do Comportamento trazer de novidade e avanço em relação ao que já está consolidado sob o título de Psicologia Política no Brasil?

Penso, francamente, que outras abordagens da Psicologia também já deram e continuando dando importantes contribuições para os problemas sociais. O fato de que o viés empírico seja agora mais contundente com a Análise do Comportamento não nos autoriza a crer que nosso conhecimento e nossas estratégias constituam a solução para todos os problemas da sociedade. Talvez a vantagem que possamos ter por lidarmos com o marco das relações funcionais pensadas pela díade Mach-Skinner para abordar os problemas humanos não seja tão grande, mas trata-se ainda de trabalhar sob o viés de um otimismo contido, o qual, porém, continua sendo otimismo.

Quais as expectativas sobre projetos futuros integrando os contextos das políticas públicas à Análise do Comportamento?

Conhecendo, em rede, o perfil dos profissionais interessados no assunto, provavelmente aparecerão manifestações de interesse temático que por si serão motivo de articulação e proposição de projetos. Mas não estaremos em contato apenas internamente ao conjunto de analistas. Outros profissionais estão, sociólogos, antropólogos, economistas interessados em temas e estratégias comportamentalistas, poderão se aproximar com vistas a pesquisas e ações interventivas de interesse público. Já está acontecendo esporadicamente e de modo setorial alguma coisa parecida, por exemplo com os projetos apoiados no conceito de nudge, já frequente em alguns setores públicos, como a Escola de Administração Pública. Após as próximas eleições teremos definições mais claras das possibilidades e da receptividade à aproximação entre ciência e gestão pública (nos termos do que Skinner chamava de “agências de controle) com finalidades direcionadas ao bem-estar social.

A equipe do Boletim Contexto agradece imensamente a sua participação Dr. Kester Carrara!

Eu também agradeço pelo convite para a entrevista e pela oportunidade de responder às questões que gentilmente me fez o pessoal do Contexto.

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